Ao dizer que a presença da empresária Isabel dos Santos na Cimeira Rússia-África, na cidade de Sochi, foi “por vontade própria e que como filha de uma cidadã russa é a coisa mais natural que esteja na Rússia”, João Lourenço mostrou o que os mais atentos já sabiam. Ou seja, a sua pequenez intelectual não permite que seja, ou ambicione ser, um Estadista.
Por Norberto Hossi
É claro que nem todos pensam assim. Por exemplo, segundo Marcelo Rebelo de Sousa, João Lourenço protagoniza “um novo tempo angolano, na lúcida, consistente e corajosa determinação de aproveitar do passado o que se mantém vivo, mas, sobretudo, entender o que importa renovar para tornar o futuro mais possível, mais ambicioso e mais feliz para todos os angolanos”.
Bem dizia Eça de Queiroz, provavelmente antecipando a pequenez intelectual dos políticos portugueses, que “os políticos e as fraldas devem ser mudados frequentemente e pela mesma razão”.
Vejamos, por exemplo, o que disse Guerra Junqueiro, num retrato preciso e assertivo desses mesmos políticos portugueses que, recorde-se, foram os pais e irmãos dos nossos políticos mais proeminentes, todos do MPLA, desde António Agostinho Neto a João Lourenço, passando – é claro – por José Eduardo dos Santos.
Talvez a grande maioria dos angolanos não saiba quem foram Eça de Queiroz e Guerra Junqueiro. Mas não se apoquentem com isso. João Lourenço também não sabe…
Guerra Junqueiro referiu-se aos portugueses como: “um povo imbecilizado e resignado, humilde e macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa morta.
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à medula, não discriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter, havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da mentira à falsificação, da violência ao roubo, donde provém que na política portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos, absolutamente inverosímeis no Limoeiro.
Um poder legislativo, esfregão de cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente, tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções, incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar”.
Regressemos, para melhor perceber o nanismo intelectual de alguns dos nossos dirigentes, ao brilhantismo bacoco de Marcelo Rebelo de Sousa. Disse ele que, da parte de Portugal, Angola conta com “o empenho de centenas de milhares que querem contribuir para a riqueza e a justiça social” com o seu trabalho, bem como “das empresas, a começar nas mais modestas, no investimento e no reforço do tecido socioeconómico angolano” e também com “o empenho das instituições públicas portuguesas, do Estado às autarquias locais”.
“Podem contar connosco na vossa missão renovadora e recriadora. Portugal estará sempre e cada vez mais ao lado de Angola”, acrescentou Marcelo Rebelo de Sousa, fazendo aqui e mais uma vez o exercício de passar aos angolanos um atestado de menoridade e matumbez.
Portugal, por sua vez, conta com a “incansável solidariedade” de Angola. “Contamos com os vossos trabalhadores, as vossas empresas, as vossas instituições públicas, a vossa convergência nos domínios bilateral e multilateral. Temos a certeza de que Angola estará sempre e cada vez mais ao lado de Portugal”, prosseguiu Marcelo no seu laudatório e hipócrita exercício de servilismo que até faz com que os dirigentes do MPLA pensem que são gigantes.
De acordo com o Presidente português, este “novo momento na vida de Angola” coincide com “um novo ciclo” nas relações bilaterais. “E nada nem ninguém nos separará, porque os nossos povos já estabeleceram o seu e o nosso caminho”, considerou Marcelo, sentindo o umbigo aos saltos, alimentado pela esperança de que os portugueses não acordem e os angolanos nunca lhe cobrem a cobardia.
“Porque estamos mesmo juntos, na parceria estratégica, na cooperação económica, financeira, educativa, científica, cultural, social e política. Porque no essencial vemos o mundo e a nossa pertença global e regional do mesmo modo, a pensar na paz, nos direitos humanos, na democracia, no direito internacional, no desenvolvimento sustentável, na correcção das desigualdades”, argumentou aquele que, em matéria de bajulação, bateu todos os recordes, desde Álvaro Cunhal a Rosa Coutinho, passando por Vasco Gonçalves, José Sócrates, António Costa, Cavaco Silva, Passos Coelho, Jerónimo de Sousa, Jaime Gama, Ferro Rodrigues e tantos outros.
Não se é estadista por decreto
A conferência de imprensa no dia 24 de Novembro de 2018, em Lisboa, do Presidente João Lourenço, foi interrompida por uma órfã dos massacres, ou genocídio, do 27 de Maio de 1977, que tentava recitar um poema em memória dos pais, vítimas da repressão ordenada por Agostinho Neto, presidente do MPLA.
O Presidente angolano, João Lourenço, permitiu a intervenção, mas não autorizou que declamasse o poema, considerando, pouco depois, questionado pelos jornalistas, que o caso de 27 de maio de 1977 era “um dossiê delicado” que ainda apresentava “feridas profundas” na sociedade. A segurança encarregou-se da retirar a jovem.
“Peço desculpa, eu sou órfã do 27 de Maio, desculpe comandante”, começou por dizer Ulika dos Santos, dirigindo-se ao Presidente angolano, aproveitando uma pergunta de uma jornalista portuguesa sobre os acontecimentos daquela data.
“Há 41 anos nós temos vindo a atravessar este silêncio ensurdecedor por parte do Governo angolano”, disse Ulika dos Santos, filha de Adelino António dos Santos, então dirigente da juventude do MPLA (partido no poder desde 1975).
“Posso ler o poema pela memória do meu pai? Tive de fugir do meu país devido ao risco de morte do meu pai”, insistiu.
O Presidente João Lourenço ainda deu instruções à segurança para que a deixassem acabar a intervenção, mas não autorizou que declamasse o poema, por se tratar de uma conferência de imprensa, com dezenas de jornalistas portugueses e angolanos.
No final da conferência de imprensa, Ulika foi levada pelos serviços de segurança, enquanto repetia, em lágrimas: “Não estou armada, só vim para ler um poema ao meu Presidente”.
De forma simples, um estadista é tudo aquilo que João Lourenço tem demonstrado não ser: uma pessoa versada e hábil nos negócios políticos do Estado, na arte de governar, um líder que governa com competência, empenho e conhecimento dos assuntos políticos.
Se fosse um estadista teria tido um comportamento diferente com a Ulika e não teria recorrido a uma explicação tão mesquinha (“como filha de uma cidadã russa”) para comentar a presença de Isabel dos Santos na Cimeira Rússia-África.
Diz a Wikipédia que para Aristóteles, o que o estadista mais quer produzir é um certo carácter moral nos seus concidadãos, particularmente uma disposição para a virtude e a prática de acções virtuosas.
Para Maquiavel, a condução do Estado é considerada uma arte, e o estadista, um autêntico artista. Para Maquiavel, assim como para Burrhus Frederic Skinner e Merleau-Ponty, o estadista é adaptável às circunstâncias, harmonizando o próprio comportamento à exigência dos tempos, sendo a sua virtude a flexibilidade moral, a disposição de fazer o que for necessário para alcançar e perpetuar a glória cívica e a grandeza, contagiando os cidadãos com essa mesma disposição.